segunda-feira, 29 de março de 2010

Pelo aniversário de Herculano



Pelo Prof. Doutor J. Veríssimo Serrão (pp.96-97)

Alexandre Herculano e a fundamentação da História de Portugal

Disse há pouco que Herculano foi um cristão não praticante, mas nunca adversário da Igreja. O seu pensamento liberal impunha-lhe uma ampla tolerância para com uma instituição que prestara os maiores serviços na fundação do reino. Nas suas andanças por terras dentre Douro e Minho pôde ele captar um quadro histórico e realidades humanas que o deixaram surpreso. A variedade da paisagem, as manifestações religiosas, a traça dos monumentos, os claustros solitários, os túmulos carcomidos, tudo lhe dera a consciência do tempo passado que ajudara a forjar uma grande nação. Por isso Herculano protestou com veemência contra as depradações e roubos que se faziam no património artístico, todo ele de marca espiritual e que perpetuava a voz de uma Igreja que moldara o carácter, a sensibilidade e o patriotismo dos homens. A venda ao desbarato dos templos e relíquias conventuais não era de molde a dignificar um liberalismo que mergulhava as raízes na Idade Média, berço histórico da Nação. Daí o seu clamor, numa hora de profunda reflexão e que traduziu em página de belo recorte literário, ao mostrar que não podia haver contradição entre o ideal fidelista da meia Idade e a cartilha dos liberais: se um erguera o amor da Pátria, a outra garantia a sua permanência histórica. Negar os valores do passado era, para o nosso autor, uma ingratidão, quase um crime:

«Oh! que se a minha débil voz pudesse retumbar nas paços dos grandes e no conselho dos legisladores, eu lhes dissera: Nossa glória passou, e o nome português é a fábula do mundo. Caídos no fundo do nosso abatimento, incertos acerca do futuro, é para o passado que, sem rubor ou sem custos, podemos volver os olhos: não apagueis portanto na face da terra natal todos os vestígios de recordações de consolo. Esses claustros, esses templos ora desertos, eram cheios de vida e de ruído em dias de virtude e de renome, e por baixo dessas lagens dormem homens que nos legaram larga herança de boa fama. Não vendais ao rico as ossadas dos nossos antepassados, que disso tomarão as raças vindouras estreita conta à vossa memória, nem fieis da piedade do abastado, porque a infâmia que lhe aumentar os tesouros, deixa de lhe ser infâmia. Ele espalhará ao vento as cinzas avitas, com o mesmo descaro com que o verdugo espalha as do justiçado, condenado a assim cumprir com sua justiça. Monumentos da história e fonte de meditações são os sepulcros, e em quase todas essas campas, hoje cobertas de musgo, se lê em letras meias gastas o nome de varões abalisados. Eles passaram, mas oxalá nunca a sua memória pereça. É ela o grito de consciência nacional: este grito, se o deixardes soar, talvez ajude a liberdade a regenerar os nosso filhos...»


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