Desgosta-me sobremaneira viver num país com a lógica de divisão política e ideológica do nosso. De um modo geral, o Sul católico da Europa, em especial a Península com suas guerras fratricidas entre a autoridade estatal e religiosa e os "do contra", ainda vive mergulhado nas dicotomias catolicismo-jacobinismo, tradição-progressismo, conservadores sociais-liberais sociais. Claro que isto adultera e deturpa conceitos políticos e ideológicos que vêm do exterior, os quais chegam aqui com um siginificado bem distante daquele em que é metamorfoseado. Basta ver os exemplos dos conceitos de "conservador" e de "liberal", os quais pouco se assemelham com os seus equivalentes das paragens mais a norte da Europa e do mundo anglo-saxónico.
O estatismo predominante na nossa política e mentalidades é fruto precisamente de uma coligação involuntária entre o conservadorismo social e corporativista, já de outrora, e o estatismo intrínseco da esquerda.
Tudo isto se reflecte obviamente na política partidária e na de governação, estando nós condenados a um bipolarismo bafiento, imobilizado e corrupto.
Quarenta anos de ditadura de espírito corporativista e socialmente complacente, por sua vez, também enraizaram hábitos e ideias e reacenderam o ódio de um núcleo coeso, que perdura até aos tempos actuais, de um progressismo sempre de mãos dadas com um anticlericalismo visceral. Núcleo este que havia tido alguns apogeus, quais fogos fátuos, na época de novecentos e suas revoluções liberais e uma experiência miserável na I República. Quando alguma oportunidade durante estes últimos séculos lhes foi dada, nunca trouxeram nada de bom, e nunca a liberdade com eles saiu mais beneficiada.
Garrett cedo o constatou:
Não será difícil constatar que o problema nasce quando o "frade" quis ser poder e ser instrumentalizado por esse mesmo poder. Foi ele quem mais saiu prejudicado e todos aqueles que dele precisavam, fosse nas escolas, nas benfeitorias ou mesmo... na Igreja.Mas o frade não nos compreendeu a
nós, por isso morreu, e nós não compreendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de morrer.
São a moléstia deste século; são eles,
não os jesuítas, a cólera- morbo da sociedade actual, os barões.
(...)
Ora o frade foi quem errou primeiro em nos não compreender, a
nós, ao nosso século, às nossas inspirações e aspirações: com o que falsificou a sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte
uma necessidade, uma coisa infalível e sem remédio. Assustou-secom a liberdade que era sua amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro modo lhe não servia nem o servia.
Nós também errámos em não entender o desculpável erro do
frade, em lhe não dar outra direcção social, e evitar assim os
barões, que é muito mais daninho bicho e mais roedor.
Porque, desenganem-se, o mundo sempre assim foi
e há-de ser.
Por mais belas teorias que se façam, por mais perfeitas
constituições com que se comece, o status in statu forma-se logo: ou com frades ou com barões ou com pedreiros-livres se vai pouco a pouco organizando uma influência distinta, quando não contrária, às influências manifestas e aparentes do grande corpo social. Esta é a oposição natural do Progresso, o qual tem a sua oposição como todas as coisas sublunares e superlunares; esta corrige saudavelmente, às vezes, e modera sua velocidade, outras a empece com demasia e abuso: mas, enfim, é uma necessidade.
Ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a oposiçãodos frades que a dos barões. O caso estava em a saber conter e
aproveitar.
O Progresso e a Liberdade perdeu, não ganhouAlmeida Garett, Viagens na Minha Terra
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