sábado, 10 de abril de 2010

O acto de dar, para lá da moral do costume

Sou dador de sangue. Nada faço de extraordinário neste acto. Mas é melhor sê-lo do que não o ser, pois nada custa, o tempo que se perde não é significativo e as dádivas podem fazer mesmo muita diferença. As contrapartidas não representam nenhuma vantagem de grande monta nem têm de representar.
Há quem defenda que as dádivas de sangue e de órgãos deviam ser pagas, à semelhança do que acontece em certos estados. Justificam o argumento dizendo que deste modo estas seriam mais frequentes e assim não haveria falta nem de uma coisa nem de outra, uma vez que os dadores teriam o chamariz da compensação financeira. Não me indigna esta tese, mas acho que está errada na sua fundamentação, em especial no que toca ao sangue. O chamariz da compensação financeira é real, mas trata-se de um estímulo que nem sempre gera as mesmas respostas. As pessoas que estivessem em situação de dificuldade financeira, decerto aproveitariam este recurso, ainda que esporádico. Daqui não viria mal ao mundo. Contudo, a situação de tão habitual e óbvia daria origem a um estigma. Quem vai dar sangue está a precisar de dinheiro, ou é pobre ou está teso. É fácil imaginar frases que seriam lugares comuns: "Vais dar sangue. Estás teso?"; "Tornou-se dador, hmmm... anda mal de guito..."; "Ir dar sangue, para quê, já andam lá os pobrezinhos todos a dá-lo." A dádiva perderia a qualidade que lhe é inerente e por si só constitui um estímulo: o de dar. O acto de dar em algumas sociedades e em alguns indivíduos confere determinado estatuto - pelo menos, o de alguém que pode de abdicar de algo em favor do outro, o papel contributivo e voluntário. É certo que se fosse a pagar e quem quisesse dar não ficaria impedido de o fazer. Porém, o acto estaria destituído do seu significado essencial e conotado com outro precisamente inverso. Isto para muitos seria um factor que os demoveria.
A doação, a dádiva, o contributo sem contrapartida constitui uma acção com algum peso na sociedade civil e nos mercados, e com um impacto micro-económico a ter em conta. Tudo isto, independentemente de preceitos morais. O acto em si tem um significado e pode constituir um estímulo. Quando certas ideias ignoram esses significado e estímulo não fazem ideia do efeito contrário que sua concretização poderá ter.

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